José Fagundes, Recordações
A amizade aconteceu rápido. Não houve a construção necessária, em tese, nem o tempo de encubação tradicional. Não sentamos distantes no mesmo banco trocando olhares furtivos, depois um pouco mais próximos e por fim lado a lado. Na verdade, olhares nunca precisaram ser trocados, a empatia foi mais forte. Sabíamos, ou melhor, sentíamos que algo fazia sentido quando estávamos juntos e gostamos de permanecer ali em frente ao mar, sob o luar, observando as estrelas e falando sobre nossas vidas em longas caminhadas entre os jardins floridos. Mesmo que nunca tenhamos ido a nenhum desses lugares juntos.
Na época, apesar de ser primavera, os dias se tornaram frios. A chuva intensa e a cidade conturbada fizeram com que as boas pessoas se recolhessem para abrigos. Em nosso bunker imaginário permanecemos aquecidos e nos fortalecemos. Conhecemos o inferno e o paraíso de cada um e nem sempre sorrindo nos acostumamos a compartilhar vidas, as nossas. Tornamo-nos uma dupla infalível, afável, mas nunca dócil - até porque não é um bom adjetivo para seres humanos.
Lá, construímos e reconstruímos inúmeras vezes nossos dias e vidas, como quem joga xadrez ou faz palavras cruzadas. Da amizade, passamos a sentir falta do que éramos quando juntos e um do outro quando separados. Tal complexidade surgiu no exato momento em que o calor do sol secou as calçadas e a cidade voltou a sua calma aparente, ainda que soubéssemos que ela nunca mais seria a mesma. Assim como também sabíamos que nem todas as verdades precisavam ser ditas e a ambivalência foi uma das que preferimos emudecer para sempre.
Trilha incidental
Eu hoje acordei tão só
Mais só do que eu merecia
Olhei pro meu espelho e rá!
Gritei o que eu mais queria
Na fresta da minha janela
Raiou, vazou a luz do dia
Entrou sem me pedir licença
Querendo me servir de guia
(...)
Mais só do que eu merecia
E eu acho que será pra sempre
Mas sempre não é todo dia
(Sempre não é todo dia, Oswaldo Montenegro)
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Comunidade do Reflexões no ORKUT
Eu leio Caíla